Esta newsletter tratará de um tema bem complicado e sensível, por mais que se tenha cuidado ao falar disso não há como evitar falar e descrever sobre violências mais explícitas, sei que algumas pessoas já sofreram com isso, então fica aqui o aviso de gatilho.
Este é um tema que eu fiquei me debatendo por semanas se escreveria ou não, pensando se eu realmente teria algo importante para agregar, depois de um tempo achei que deveria escrever e ao final do texto explico o motivo.
As revistas são importantes
Eu sempre fui nerd que gosta de animes, quadrinhos e jogos (bem, ainda gosto), ou seja, vivi grande parte da vida alienado, sem se preocupar com algumas questões ou temas de nossa sociedade, mesmo se este tema estivesse presente em alguma obra que eu consumia, não era algo que eu tinha consciência que estava lá, em minha cara.
Na década passada eu passei a consumir uma revista muito legal, a Mundo Estranho da Editora Abril, para quem não a conhece era uma revista de curiosidades com um foco em um público mais jovem (e com muitos infográficos, eles até já ganharam prêmios por causa disso), eu adorava esta revista e era uma publicação popular na época, porém com a crise da Editora Abril, a Mundo Estranho foi uma das revistas que deixou de existir.
Mas a ME era a irmã mais nova de uma outra revista, a SuperInteressante, a pegada da revista é bem parecida, entretanto em vez de se apoiar só em infográficos, a SI tem mais textos, e o foco deles é em um público mais velho, eu migrei para esta revista, não comprava ela com a mesma frequência que comprava a outra, entretanto eu gostei muito da revista (tanto que citei ela em uma news passada).
A SuperInteressante me mudou a visão de mundo em muitos aspectos e temas justamente por ser uma revista que tratava de assuntos mais sérios, foi em 2015 na edição Nº 349 que ela me deu um soco de estômago, a matéria de capa é "Como silenciamos o estupro", um tema que eu nunca havia parado para pensar, e foi aí que abri os meus olhos para isso.
Caso você queira ler o texto, ele está disponível no site da Super (clique aqui, use o 12ft para burlar o paywall), mesmo que o texto seja de 2015 (quase 10 anos) ele é ainda relevante, e de acordo com o site ele foi atualizado em abril de 2023, também pretendo deixar scans em alta qualidade do texto original (clique aqui).
Acho que a primeira coisa que o texto te faz é chocar, contar uma história que não aconteceu há tanto tempo atrás, e pensar que algo assim ainda acontecia no Brasil é horrível demais (leia o texto para entender, não vou explicitar aqui).
Outro ponto importante para ter em mente é que a maioria dos abusadores são pessoas próximas da vítima como família (pai, irmão, tio, avô), marido ou namorado, amigos e colegas, a ideia de um maníaco que ataca mulheres à noite não é algo tão comum quanto muitos pensam. Basta ver qualquer notíciario e notar como muitos do feminicídios são causados pelo ex’s.
E quando se trata deste assunto as mulheres são muito julgadas, entretanto quando vai se analisar o crime, o principal fator para o ataque é a oportunidade e não a forma como a mulher se veste, tentar justificar o crime pela forma como a mulher se veste é responsabilizar a vítima por algo que ela não tem culpa.
Vamos conhecer alguns conceitos ligados à arte
Ao longo do tempo eu aprendi algumas coisas a mais sobre a relação que a cultura pop tem sobre as mulheres, algo que também muda a nossa visão. Principalmente sobre determinadas violências que são retratadas e normalizadas, que alguns podem nem pensar muito.
Com isso em mente, vamos ver alguns destes conceitos.
Acho que o primeiro ponto que gostaria de citar é o termo que a Gail Simone criou em 1999, o Mulheres na Geladeira (Women in Refrigerators, no original).
A origem do termo veio de uma história do Lanterna Verde dos anos 90, quando ele chega em casa e encontra a sua namorada morta na geladeira. A ideia deste conceito é falar sobre a representação das mulheres nas histórias, onde elas são vítimas de alguma coisa (ou mesmo morrem) para criar uma motivação no personagem principal (o homem).
Isso é algo bem comum, talvez se você não tenha notado ou já fez uma brincadeir com a situação, pois estamos falando da donzela em perigo.
Outro conceito que é interessante saber é do Teste Bechdel-Wallace, originalmente criado por Liz Wallace e popularizado pela quadrinista/cartunista Alison Bechdel (aliás, conheçam os quadrinhos da Bechdel como Fun Home). O teste serve para avaliar a representação feminina em filmes e outras obras, e tem 3 requisitos:
1) Tem que ter, pelo menos, 2 mulheres; 2) que conversem entre elas; 3) e que o assunto seja sobre outra coisa além de homem (alguns acrescentam uma regra adicional que as mulheres tem que ter nomes).
A ideia do teste não serve só para avaliar a representatividade da mulher, como também serve para dar profundidade às personagens e suas histórias, para que não só sirva de motivação para os homens ou exclusivamente para eles. Claro que o teste tem limitações, pois ele serve para avaliar as personagens presentes na obra, mas não avalia o conteúdo da história em si, que ainda pode conter conteúdo sexista.
E ainda sobre quando falamos sobre obras, é importante pensar que muitas delas foram feitas e produzidas por homens, nisso elas contém male gaze (ou em português, o olhar masculino), que seria a forma como a mulher é retratada, principalmente para ser apelativo e agradável ao público masculino.
Male gaze não é exclusivo dos quadrinhos, mas de diversas mídias (como pintura, fotografia, cinema, música etc.), isto molda a forma como o público (principalmente homens) pensam sobre as mulheres. Lembro que eu aprendi sobre isso em uma palestra que as pesquisadoras Dani Marino e Laluña Machado deram no MIS.
Por exemplo, muitas pinturas têm essa ideia de mostrar o corpo feminino e de como ele está sendo observado, em alguns casos a própria mulher na pintura sabe que está sendo observada. Claro que o corpo feminino é uma obra de arte*, porém o que temos aqui não é o corpo sendo tratado como arte, sim como objeto de desejo de um público específico.
* Seria mais adequado dizer que o corpo humano é uma ferramenta de expressão de arte, por si só.
Conceitos estabelecidos, o que podemos pensar sobre isso?
Com isso tudo dito, qual é o objetivo desta news? Pois sei que tem mulheres que leem a newsletter e para elas isso não é nenhuma novidade, pois já convivem com isso a vida inteira. Entretanto, a ideia aqui é outra, é falar com as pessoas que não tem real consciência disso, assim como eu era antes, que nunca realmente tinha pensado nisso e só fui conscientizado pela SuperInteressante.
Eu quero que este texto possa conscientizar outras pessoas sobre o assunto, apresentando alguns conceitos em torno do tema. E sinceramente, o que foi abordado aqui é só a ponta do iceberg.
E não há como negar que muito do conteúdo nerd, geek, tecnológico etc, sempre foi mais voltado para um público masculino, só nos últimos anos que muito disso tem sido quebrado e mudado, mesmo assim ainda temos diversas obras (filmes, séries, games e quadrinhos) onde a retratação das mulheres segue este padrão citado e muito do público segue alienado sobre este tema.
Por último, acho que gostaria de citar uma história, enquanto eu estava pesquisando sobre arte interativa me deparei com a exposição que a artista Marina Abramović fez em 1974 da chamada "Rhythm 0", a proposta era a seguinte, a própria artista se declarava como um "objeto", ela ficaria parada enquanto o público poderia interagir com ela através de diversos objetos presentes no local.
No começo as interações eram inofensivas, porém logo começou a se tornar algo mais pesado, não vale a pena descrever as torturas que ela passou nas 6 horas de exibição (acho que a foto do rosto dela diz tudo que precisamos saber).
E não é difícil de imaginar que a maioria das pessoas que fizeram estes atos horríveis foram homens. Rhythm 0 é uma demonstração do que as mulheres e corpos femininos sofrem, dos constantes ataques e abusos, até na tentativa de controle.
Sinceramente, quando se trata de um assunto como este, é impossível de evitar falar sobre estas violências, mesmo que elas estejam muito presente e constante em nossa sociedade e na cultura pop, que por muito tempo normalizou isso e ainda é um assunto que é muito silenciado ou desmerecido.
Então, se você leu tudo isso até aqui e não sabia muitas das informações apresentadas, espero de verdade que pense mais sobre este tipo de violência que ainda acontece em nossa sociedade e está presente na cultura pop, e não normalizar determinadas práticas.
Recomendação
Hoje farei mais de uma recomendação.
Primeiro o documentário em 2 partes Renascendo da Cinzas (Phoenix Rising no original) conta a história da atriz Evan Rachel Wood e do seu relacionamento abusivo com o Marilyn Manson, acho que este pode ser um grande exemplo de como casos de estupro e controle acontecem. Como o abusador age e as consequências nas vítimas e a sua luta por justiça (no momento que escrevo este texto, MM abriu processo de calúnia contra a atriz e outra mulher por terem destruído a carreira dele, espero que MM pague por seus crimes).
*** Eu escrevi este texto há tanto tempo que houve uma atualização no fato do parágrafo anterior, MM retirou o processo de calúnia.
O filme brasileiro Medusa (2023), escrito e dirigido por Anita Rocha da Silveira. É um filme de ficção sobre a repressão e perseguição que as mulheres sofrem na sociedade e religião, ao ponto de haver uma punição injusta.
Na área dos quadrinhos tem 2 que vem em minha mente:
Patos - Dois anos nos campos de petróleo da autora canadense Kate Beaton publicado pela WMF Martins Fontes. Em 2005, recém formada, Kate quer pagar o quanto antes a dívida estundantil, então ela decide trabalhar nos campos de petróleo. Lá se paga muito bem, entretanto a maioria da população e trabalhadores é composta por homens, vemos o que ela passou nestes 2 anos que ela trabalhou por lá.
Meu Diário de Nova York da Julie Doucet publicado pela Veneta. Aqui a autora conta a sua própria história dos relacionamentos que teve, falando da sua primeira vez (que foi horrível), e o relacionamento que ela teve com outro artista quando ela se mudou para NY (a autora também é do Canadá).
Ler estes dois quadrinhos dá uma agonia e revolta enorme, principalmente pelo que as duas autoras passaram, em momentos que eu lia só pensava "put@ que o pariu".
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